quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Integração de Cursos de Especialização Tecnológica
na Força Aérea Portuguesa


“...Arranca o estatuário uma pedra dessas montanhas, tosca, bruta, dura, informe e, depois, que devastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão e começa a formar um homem; primeiro, membro a membro, e depois feição por feição, até à mais miúda: ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, avulta-lhe as faces, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos: aqui desprega, ali arruga, acolá recama e fica um homem perfeito...”
Padre António Vieira


Tal como o Padre António Vieira expressava nas palavras inscritas no Sermão do Espírito Santo, o Homem nasce tosco, bruto, duro e informe. Somos, por conseguinte, à nascença, seres imperfeitos carentes de valores, conhecimentos, competências, entre muitas outras qualidades que não são inatas.
Para que se torne “perfeito”, o Homem requer o polimento conjuntural da sociedade em que se insere. O paradigma de perfeição, aceite e almejado na sociedade portuguesa actual, passa por um maço e um cinzel que a todos transforma em licenciados, mestres ou até doutores (havemos de lá chegar).
Nem sempre assim foi. Houve tempos em que o grau académico não era sinónimo de competência técnica e profissional. Coexistiam ambas pacificamente, numa sociedade imperfeita mas quiçá mais íntegra e pragmática. Não eram necessárias aptidões adquiridas nos estabelecimentos de ensino secundário ou superior para desempenhar, com elevado profissionalismo, tarefas eminentemente técnicas. E o mundo evoluiu!
Actualmente, mercê dos inúmeros normativos, regulamentos e paradigmas impostos pela Comunidade Europeia, Portugal apresenta-se ávido de profissionais altamente qualificados, não só tecnicamente mas também com competências sócio-culturais. É evidente e inegável a mais valia dos diversos saberes adquiridos, pois estes representam e reflectem pessoas mais capazes, mais versáteis, mais adaptadas. Faltará, no entanto, provar a validade deste recente quadro social perante a crescente competitividade dos mercados de trabalho.
A Força Aérea Portuguesa (FAP), como parte integrante da sociedade, encetou um processo de reestruturação dos Cursos de Formação de Praças, em Regime de Contrato (RC), de forma a normalizar a formação ministrada nos preceitos definidos pelo Governo, em 2006, com a criação dos Cursos de Especialização Tecnológica (CET). Devem reconhecer-se méritos ao referido processo, que passam pela tentativa de ajustar o Centro de Formação Militar e Técnica da Força Aérea (CFMTFA) aos padrões dos centros de formação civis, por melhorar o nível académico dos militares ao serviço, reduzir a duração do Curso de Formação de Sargentos (CFS) do Quadro Permanente (QP), ou ainda procurar oferecer melhores condições de recrutamento.
Existem, porém, algumas particularidades na FAP que deverão ser consideradas: a formação no CFMTFA tem por único objectivo a preparação de jovens para o desempenho de funções na própria Instituição; são manifestos os graves problemas de efectivo, nas diversas especialidades; o sistema contratual implementado é aparentemente inadequado, em virtude da sua curta duração.
Realizando uma análise sucinta de todas as variáveis apresentadas, podem inferir-se algumas notas de reflexão. Se por um lado é aceitável e desejável a preocupação com o nível de conhecimentos gerais dos militares no activo, por outro é incontestável a necessidade de rapidamente formar pessoas com as qualificações essenciais ao desempenho técnico nas múltiplas áreas de intervenção da FAP. Também será discutível a indispensabilidade da formação sócio-cultural e generalista à partida. Por outras palavras, será determinante para a acção técnica especializada a aquisição de conhecimentos, a priori, cujo conteúdo é de cariz transversal e que conduz a um maior grau académico? Será possível à FAP ser atractiva, mantendo a formação inicial focalizada na especialização técnica e garantindo que, ao longo da permanência na Instituição, os Praças RC possam frequentar módulos lectivos, presenciais e não presenciais, que lhes confiram o grau académico desejado e o nível de formação profissional pretendido?
De acordo com a situação actual, pesando todos os factores acima mencionados e passíveis de óbvia discussão, o compromisso que eventualmente responde de forma equilibrada aos problemas equacionados, passará pela formação modular que conduzirá à atribuição de créditos, como aliás previsto no diploma legal criado para o efeito. Esta hipótese resolve, ou mitiga, a questão da duração dos CFP/RC que poderão ser mais reduzidos, sem obstar aos módulos complementares facilmente integráveis no figurino pedagógico do CFMTFA ou outros núcleos de formação, concorrendo directamente para o eventual aumento do número de especialistas nas fileiras da FAP. Por outro lado, o ónus da certificação profissional e do grau académico transitará para o militar, cuja obtenção será reflexo do seu esforço ao longo do contrato e não na formação inicial. Este facto poderá ter também relevância ao contribuir para a diminuição do insucesso escolar, uma vez que serão as matérias de carácter geral (matemática, português, inglês) aquelas que mais dificuldades revelam (CFS/QP), quando comparadas com as de âmbito técnico.
Outras perspectivas iluminarão seguramente o assunto respeitante à adopção dos CET por parte da FAP, contudo não deverá ser esquecida a missão expressa e inequívoca da FAP “…a defesa do espaço aéreo nacional e a cooperação com os outros ramos das Forças Armadas na defesa militar da Nação…” e “…a participação em missões no âmbito de compromissos internacionais e de interesse público de Portugal…”. Se, cumprindo a missão, for ainda possível deitar mãos ao maço e ao cinzel para assim se aperfeiçoar a “…pedra…tosca, bruta, dura e informe…”, a FAP constituir-se-á como um pólo de formação de referência no país, como reconhecidamente tem sido ao longo das cinco décadas de existência.

Óbidos, 19 de Outubro de 2008
Maj/Nav Paulo Santos

Nenhum comentário: